Thiago Sant’Anna da Silva e Yaniv Chor*
Imaginem uma empresa que se orgulha de ter todo o corpo diretivo e gerencial formado apenas por profissionais de carreira da própria empresa, ou seja, os “criados dentro de casa”, com anos de experiência, que conhecem todos os aspectos do negócio, demonstrando para toda a organização que, com trabalho duro todos podem crescer dentro da empresa.
Será que a manutenção de um corpo diretivo homogêneo e entrosado é garantia para um ambiente controlado? O mundo acadêmico tem discordado disso e há várias reflexões para trazermos ao mundo empresarial.
A Endogenia Acadêmica, também conhecida como endogamia acadêmica ou academic inbreeding, é um fenômeno que tem recebido crescente atenção nos círculos educacionais e de pesquisa. Ela se refere à prática de contratar ou promover profissionais dentro de uma instituição acadêmica com base principalmente em sua educação e experiência anterior dentro da mesma instituição. Ou seja, ocorre quando professores ou pesquisadores que estudaram, obtiveram graduações ou concluíram seus graus de pós-graduação na mesma instituição em que estão atualmente empregados são favorecidos em processos de recrutamento ou promoção.
Existem diversos riscos associados a esse fenômeno, como a falta de diversidade de perspectivas, já que os professores e pesquisadores que compartilham uma origem acadêmica comum tendem a ter uma visão de mundo semelhante. Pode ocorrer ainda a estagnação intelectual, ou seja, quando ideias e metodologias similares são perpetuadas sem questionamento crítico. Nesse sentido, a instituição perde a oportunidade de avançar e se adaptar às mudanças em sua área de atuação.
Diante desse cenário, a diversidade se torna fundamental para o desenvolvimento do pensamento crítico e para a criação de soluções inovadoras. Para prevenir a endogenia acadêmica, algumas universidades pelo mundo têm atuado de maneira proativa, promovendo maior transparência nos processos de recrutamento e seleção, criando regras que promovam a imparcialidade na tomada de decisão, adotando políticas afirmativas e fazendo buscas ativas de talentos externos. Algumas universidades nos EUA, por exemplo, simplesmente não aceitam em seu corpo acadêmico profissionais formados por elas mesmas. Já no Brasil, a endogenia acadêmica é um problema comum. Um estudo de 2017, revelou que, em média, entre 57% e 77% dos professores da das faculdades de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) são formados na própria instituição.
Isso é potencialmente um problema, como demonstra estudo publicado na revista Higher Education Quarterly, que analisou a relação entre mobilidade acadêmica e agenda de pesquisa de cientistas em mais de 140 países. A conclusão foi que pesquisadores que constroem sua carreira na mesma instituição em que obtiveram o doutorado tendem a se dedicar a estudos de caráter incremental, de baixo impacto e focados na confirmação de ideias estabelecidas. Já os cientistas que diversificam sua experiência profissional e migram para instituições diferentes daquelas em que se doutoraram se engajam mais em trabalhos colaborativos, multidisciplinares e orientados à produção de conhecimento novo e disruptivo, mesmo em um cenário de escassez de financiamento.
Trazendo essa perspectiva para o mundo corporativo, diversas empresas no Brasil se orgulham de ter todo o seu corpo diretivo “formado dentro de casa”, ou então afirmam que “este é um lugar para se fazer carreira”. Nesse cenário, boa parte dos tomadores de decisão entraram na empresa como recém-formados e possuem toda sua experiência profissional dentro da mesma empresa, por meio do famoso job rotation.
Nada contra empresas que promovem uma boa carreira para seus colaboradores, pelo contrário, isso deve ser exaltado. O problema é quando esta é a única maneira de se formar gestores, principalmente em áreas mais técnicas, como as de Riscos, Compliance e Auditoria Interna, nas quais é necessária uma capacitação específica e certa “bagagem” de mercado para poder enxergar de forma diferente do que “sempre foi feito”.
Portanto, quando uma organização tem a tendência de contratar, promover ou favorecer somente seus funcionários de carreira sem incluir estrategicamente indicadores de diversidade, podemos estar diante de um cenário de “endogenia corporativa” e seus riscos associados, conforme exposto abaixo.
– Falta de diversidade e de perspectivas: assim como na academia, a endogenia corporativa pode resultar em uma falta de diversidade de perspectivas dentro da empresa. Os funcionários tendem a compartilhar experiências e origens semelhantes, o que pode limitar a criatividade e a inovação.
– Resistência à inovação: a falta de “profissionais de mercado” pode promover resistência à mudança e à inovação. Se as pessoas que estão na organização sempre fizeram uma atividade de determinada forma, a tendência é que sigam fazendo desta mesma forma, a não ser que alguém traga ideias novas. E em um ambiente cujas pessoas não têm acesso a diferentes formas de se trabalhar, novas ideias podem não ser tão valorizadas quanto as práticas existentes, prejudicando a capacidade da empresa de se adaptar a um ambiente de negócios em constante evolução.
– Potencial de nepotismo e conflito de interesses: assim como na academia, a endogenia corporativa pode abrir espaço para o nepotismo, com parentes de funcionários existentes ou pessoas com relações desvinculadas da sustentabilidade do negócio sendo favorecidos em processos de contratação ou promoção.
– Dificuldade de identificação de fraudes corporativas: ambientes nos quais as pessoas sempre “fizeram da mesma forma” podem ocultar fraudes significativas, principalmente se não existe, na média gerência ou na alta administração, profissionais que venham com visão diferente e que tenham a capacidade de questionar o status quo.
Para prevenir a endogenia corporativa e promover a diversidade e a inovação, as empresas podem adotar medidas semelhantes às mencionadas no contexto acadêmico. Isso inclui a transparência nos processos de contratação e promoção, a definição clara de critérios de seleção, a diversificação dos comitês de seleção e a busca ativa de talentos externos com experiências diferentes do corpo de colaboradores atual, inclusive para cargos gerenciais e diretivos.
Além disso, as empresas podem promover uma cultura de inclusão e diversidade, valorizando as contribuições de funcionários com experiências e perspectivas diversas. Isso pode ajudar a criar ambientes de trabalho mais dinâmicos e eficazes, capazes de se adaptar e prosperar em um mundo de negócios em constante mudança. Importante atentar que, para trazer profissionais do mercado, principalmente em níveis gerenciais e diretivos, é fundamental garantir que seus valores morais estejam alinhados aos valores éticos da organização. Processos robustos de background check e análise de aderência à ética corporativas são fundamentais para garantir este fit cultural.
Em resumo, a endogenia acadêmica e corporativa apresenta riscos significativos, mas esses riscos podem ser mitigados por meio da implementação de práticas e políticas que promovam a diversidade, a transparência e o mérito, aliados a estratégias de mesclagem de profissionais de mercado. A prevenção desses fenômenos é essencial para garantir o desenvolvimento contínuo tanto das instituições acadêmicas quanto das empresas no século XXI.
*Thiago Sant’Anna da Silva é gerente de expansão e parceria da Aliant, empresa especializada em soluções para Governança, Compliance, Ética, Privacidade e ESG.
*Yaniv Chor é diretor de Serviços Gerenciados e Education da Protiviti, empresa especializada em soluções para gestão de riscos, compliance, ESG, auditoria interna, investigação, proteção e privacidade de dados