Como empresas devem apoiar os colaboradores
Por Luckas Reis, líder de Psicologia e Pessoas da Vittude*
Nas últimas semanas temos vivido uma crise humanitária causada por uma tragédia climática que trouxe consequências para 431 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul. No Maranhão, as chuvas intensas dos últimos dias deixaram mais de 100 municípios em estado de alerta e pelo menos 30 cidades em estado de emergência. Em eventos como estes, de que forma as empresas podem apoiar a saúde mental dos colaboradores?
De acordo com a Carta Humanitária do Manual Esfera, o primeiro passo é agir pensando na ordem de prioridade. No caso das vítimas primárias, pessoas que foram atingidas diretamente pelas enchentes e que perderam tudo, o apoio prioritário inicial é o da segurança: elas precisam de abrigo, alimentação, água, vestuário e demais recursos que irão prover as necessidades básicas das pessoas. Nesse primeiro momento, trata-se de um trabalho quase humanitário, ainda não efetivamente de apoio e cuidado à saúde mental.
Já as vítimas secundárias, que foram indiretamente afetadas, como familiares, líderes, colegas de pessoas que perderam tudo e que têm acesso, de forma direta ou indireta, aos relatos dessas vítimas primárias, precisam de cuidados diferentes. Nesse grupo entram também os profissionais de RH e os times de saúde, que estão na linha de frente atuando diretamente com as pessoas colaboradoras que foram diretamente atingidas pela tragédia.
As vítimas secundárias estão em segurança, mas são fortemente impactadas pela crise e precisam de um olhar mais cuidadoso voltado à saúde mental. A recomendação inicial é a de fazer um trabalho em grupos de acolhimento, mediados por psicólogos, com foco em ajuda mútua. Esse trabalho tem como objetivo apoiar as pessoas a expressarem, de alguma forma, o que estão sentindo, para que seja possível começar a elaborar todas essas questões internamente.
Esses grupos de acolhimento são, inclusive, um fator preventivo importante para Transtornos de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e de outras complicações psicológicas que podem afetar as pessoas no médio e longo prazos.
Nesses grupos de acolhimento é possível identificar os colaboradores ou pessoas que estão atuando na linha de frente que estão com maior sofrimento psíquico e encaminhá-las para um trabalho de psicoterapia breve, focado em crises, desastres e emergências. É o momento de ajudar as pessoas a lidar com o luto, a desesperança e o desamparo, especialmente considerando os desafios que elas vão ter de passar na reconstrução de suas vidas.
Com o tempo, quando as vítimas primárias que hoje não estão em segurança estiverem seguras, cuidar da saúde mental delas passa a ser a prioridade. Inicialmente por meio de grupos de acolhimento e psicoterapia breve, como foi feito com as vítimas secundárias, mas sempre com um olhar atento para identificar casos mais críticos que serão encaminhados para um apoio psicoterápico ou psiquiátrico, se necessário.
É essencial também atuar na coordenação do cuidado de saúde mental para todos os colaboradores, acompanhando a evolução do quadro clínico ao longo do tempo e intervindo da forma que mais se fizer necessária.
Síndrome do sobrevivente: efeito comum das crises
Apesar de não estar catalogada no Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), a sintomatologia típica da síndrome do sobrevivente, ou culpa do sobrevivente, é um quadro sustentado pela culpa (injustificada) que uma pessoa sente por haver passado por um grande trauma e sobrevivido a ele. Essa sobrevivência não precisa ser necessariamente à morte, mas uma sobrevivência simbólica, como por exemplo nos casos em que a pessoa não perdeu seus bens materiais, enquanto outras perderam tudo, ou quando ela não perdeu familiares, mas outros sim.
Apesar de ser uma síndrome frequentemente encontrada em pessoas que passam por esse tipo de situação, é preciso atenção, pois ela pode evoluir para um quadro de TEPT. Ela aparece com maior frequência nas vítimas secundárias e os grupos de acolhimento são os espaços mais adequados para orientar sobre as possíveis consequências psicológicas que costumam atingir pessoas do time de RH que estão na linha de frente ou do líder que é próximo às pessoas que foram vítimas primárias da tragédia, por isso a importância de as empresas investirem nestes espaços de escuta e apoio.
Nestes grupos de acolhimento costumamos enfatizar que de alguma forma a culpa é uma resposta possível em momentos de tragédia, é de certa forma natural sentir-se desta forma, mas que esse sentimento não deve ser negligenciado ou deixado de lado. Eventualmente, se as pessoas se sentem muito impactadas, é recomendado procurar apoio psicológico. É importante externalizar o que se sente, seja nos grupos ou na psicoterapia individual, com a ajuda de um profissional.
Como saber se você está passando pela síndrome do sobrevivente? Ela pode ser uma sensação frequente de angústia, de culpa injustificada, que pode ter como sintomas a insônia, crises compulsivas de choro, dores de cabeça, pensamentos negativos, alterações bruscas do humor e depressão, entre outros. Esses sintomas deixam a experiência ainda mais sofrida e dolorida e foi algo intensamente vivenciado pelas pessoas na pandemia de Covid-19 e na tragédia de Brumadinho (MG).
Cuidar de quem cuida
É importante salientar que o cuidado com a saúde mental deve ser estendido aos times de saúde, RH, médicos, enfermeiros e todas as pessoas que estão cuidando das vítimas na linha de frente. Essa é uma linha de cuidados específica, voltada a apoiar psicologicamente os profissionais de saúde e os voluntários que estão agindo de forma direta com as vítimas. Um traço comum dos cuidadores é doar-se cada vez mais ao outro que precisa mais naquele momento, e esquecer de cuidar de si mesmo, o que não é sustentável.
Todo esse trabalho é essencial para que a empresa e seus colaboradores possam ser amparados e atendidos em uma crise, não só no que concerne à saúde mental e física das pessoas envolvidas, como em relação à viabilidade e sustentabilidade do negócio.
*Luckas Reis é psicólogo com atuação clínica, organizacional e acadêmica. Também é mestre em Psicologia Social e do Trabalho pelo Instituto de Psicologia da USP, além de Pesquisador no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise do IP-USP. Ocupa o cargo de líder de Psicologia e Pessoas na Vittude, empresa referência no desenvolvimento e gestão estratégica de programas de saúde mental para empresas, onde está a frente de soluções clínicas e organizacionais de psicologia.